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Estadão e Rádio Eldorado: aniversariantes pela liberdade

  • Writer: Adhemar Altieri
    Adhemar Altieri
  • Jan 5
  • 7 min read

Updated: Jan 6

Por Adhemar Altieri*


Votação da emenda constitucional Dante de Oliveira em 1984, que traria de volta eleições diretas para a presidência da república
Votação da emenda constitucional Dante de Oliveira em 1984, que traria de volta eleições diretas para a presidência da república

Com o jornal O Estado de S. Paulo comemorando seus 150 anos de grandes e históricas contribuições para o Jornalismo e o próprio Brasil, é importante lembrar que todas as empresas do Grupo Estado comemoram seus aniversários simultaneamente. Entre elas está a Rádio Eldorado, fundada em 1958, completando 67 anos de tradição e qualidade, tanto no jornalismo que sempre praticou quanto na programação musical de bom gosto para os ‘melhores ouvintes’.


São muitas as iniciativas e episódios marcantes ao longo da história da Eldorado, mas um deles ilustra com clareza a postura intransigente pela livre manifestação de ideias, que a emissora adotou e defendeu desde sua criação. É também uma fase de que participei diretamente, chefiando o departamento de Jornalismo na primeira de duas passagens pela emissora, nas duas ocasiões com João Lara Mesquita na direção executiva.


Era 1984, o regime militar ainda comandava o país, mas já enxergava seu fim e a sociedade reagia, acelerando a inevitável transição. Naquele ano, multidões foram para as ruas exigindo ‘diretas já’, ou seja, eleições diretas para substituir o então presidente, general João Figueiredo. O clima era pesado e muitos veículos temiam represálias e hesitavam para cobrir as manifestações, que cresciam e pressionavam pela aprovação no Congresso da Emenda Dante de Oliveira, que permitiria eleições diretas para presidente da república e marcaria, efetivamente, o fim da ditadura.


A ultima e a maior manifestação pelas Diretas Já, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo
A ultima e a maior manifestação pelas Diretas Já, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo

Na Eldorado nunca houve dúvida sobre cobrir toda a movimentação e assim foi também quando o regime militar impôs medidas de emergência, tentando intimidar os parlamentares que votariam a emenda e impedir a circulação de informações. Vale lembrar que eram tempos sem internet, portanto os meios mais ágeis na disseminação de informações eram o rádio e a televisão. Não por acaso, as medidas de emergência censuravam a cobertura jornalística a partir de Brasília – a última vez em que a censura foi imposta formalmente no país. A proibição pretendia interferir apenas com o imediatismo, pois no dia seguinte, tudo seria relatado em detalhes nos veículos impressos.


Nas ruas a movimentação crescia, com manifestações cada vez maiores em várias cidades, no Rio de Janeiro em 10 de abril, Porto Alegre no dia 14 e a maior de todas, no Vale do Anhangabaú em São Paulo no dia 16. No palco próximo do Viaduto do Chá, inúmeros artistas, empresários, jogadores de futebol e políticos, com o comando do maior nome do rádio esportivo da época, Osmar Santos, que ficou conhecido como o locutor das Diretas. Não se via o fim da massa humana que ocupava o Anhangabaú e estima-se que mais de 1 milhão de pessoas participaram daquela manifestação.



Osmar Santos, o locutor das Diretas, no comando da manifestação no Vale do Anhangabaú em São Paulo
Osmar Santos, o locutor das Diretas, no comando da manifestação no Vale do Anhangabaú em São Paulo

Para um veículo de comunicação, simplesmente cumprir as medidas de emergência significava não noticiar nada do que estava para acontecer em Brasília no dia 25 de abril, com a votação da emenda Dante de Oliveira. Na Eldorado, não cobrir não chegou nem a ser cogitado. Pelo contrário, pensou-se em uma estratégia para não atender à imposição de censura. O texto das medidas nos deu o caminho: dizia que estava ‘proibido disseminar informações produzidas ou geradas em Brasília’.


Decidiu-se, então, transmitir ao vivo das redações dos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde. Lá fui eu, na época com o pé engessado após tropeçar no estúdio principal da Eldorado. Instalamos uma linha privada para garantir a continuidade das transmissões e me posicionei na sede do Estadão, na Marginal do Rio Tietê. Os bravos José Márcio Mendonça, na sucursal do Estadão em Brasília, e Sílvia Caetano, na Câmara dos Deputados, que normalmente entravam no ar na Eldorado, desta vez transmitiam as informações por telefone para mim e eu relatava no ar o que estava acontecendo em Brasília. Assim, não estávamos transmitindo ‘informações produzidas ou geradas em Brasília’ e sim informações produzidas ou geradas na redação do Estadão...


Enquanto isso, outras emissoras pouco ou nada informavam sobre o que se passava em Brasília. Uma delas, de forma até criativa, fazia um número excessivo de boletins de trânsito, tentando avisar nas entrelinhas que estava tudo ‘normal’. Mas todos os detalhes e declarações eram transmitidos pela Eldorado e no início da tarde, a então repórter Roseli Tardelli ligou da rua para contar que nos pontos de táxi da cidade, os motoristas se aglomeravam em volta de um dos carros com as portas abertas e o rádio ligado na Eldorado. Segundo Roseli, que anos depois fundaria a pioneira Agência de Notícias da Aids, o mesmo acontecia em bares, barbearias e farmácias. O público percebeu e na ausência de redes digitais, o boca a boca fez o resto.



João Lara Mesquita, diretor executivo da Eldorado na época das Diretas Já
João Lara Mesquita, diretor executivo da Eldorado na época das Diretas Já

Levou algumas horas para o então órgão de fiscalização da radiodifusão, o Departamento Nacional de Telecomunicações (Dentel) perceber o que estava acontecendo. Sabendo que isso poderia acontecer, João Lara mandou desligar o console do PABX da Eldorado, portanto era impossível ligar para a rádio pois só funcionavam as linhas diretas usadas pela equipe de reportagem. Demorou, mas o Dentel conseguiu descobrir uma dessas linhas e ligar para a redação.


Deu-se o seguinte diálogo:


Dentel: “Vocês estão descumprindo a determinação do governo, não é permitido transmitir informações de Brasília”

João Lara Mesquita: “Deve haver algum engano. Nós estamos transmitindo informações das redações de O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde”


No Estadão, aproveitei para entrevistar o então diretor do jornal, Júlio de Mesquita Neto, sobre aquele momento que o país atravessava. Naquele dia, circulavam informações atribuídas ao general Figueiredo, que teria dito que alguns donos de jornal deveriam ser ‘encostados no paredão’. Dr. Júlio não deixou por menos e respondeu que se alguém tivesse que ser encostado em algum paredão, seriam os autores dessa ameaça. Lembrando, sempre, que assim como informações de Brasília estavam proibidas pelas medidas de emergência, certamente comentários como esse também estavam.


Em Brasília, as galerias da Câmara dos Deputados estavam lotadas por manifestantes aguardando a votação da emenda Dante de Oliveira. Nas ruas da capital federal, trânsito congestionado e motoristas promovendo ‘buzinaços’ em apoio à aprovação da emenda. Responsável pela execução das medidas de emergência, o então chefe do Comando Militar do Planalto, general Newton Cruz, a cavalo, liderava a tropa entre os automóveis, dando chicotadas nos carros que buzinavam e ameaçando os motoristas com armas. Tudo isso, assim como a movimentação na Câmara, foi ao ar pela Eldorado.



O general Newton Cruz, liderando as tropas nas ruas de Brasília no dia da votação da emenda Dante de Oliveira
O general Newton Cruz, liderando as tropas nas ruas de Brasília no dia da votação da emenda Dante de Oliveira

A pressão do Dentel aumentava, e ameaçavam tirar a Eldorado do ar. Resposta de João Lara Mesquita: fechar os portões do transmissor, que ficava na Serra do Mar, dobrar a segurança e impedir a entrada de qualquer pessoa. Na redação da Eldorado, que ficava na Rua Major Quedinho, o elevador exclusivo que atendia a rádio, única forma de subir ao oitavo andar, foi desligado, tornando impossível chegar à emissora. Só quem sabia da existência de uma saída de emergência, pelo antigo Hotel Jaraguá, conseguiria entrar.


Em mais um diálogo telefônico com o Dentel, falou-se em interromper as transmissões feitas a partir das redações de O Estado e Jornal da Tarde. Lembrou outro episódio relatado recentemente pelo Marco Antonio Rocha, na época comentarista da Eldorado e por 20 anos, editorialista do Estadão. Em 1975, Marquito, como é conhecido, foi citado em nota do 2º Exército como ‘procurado’ um dia após o assassinato de Vladimir Herzog no DOI-CODI. Ruy Mesquita, então diretor do Jornal da Tarde, ligou para o ministro da justiça Armando Falcão e disse: "Armando, aqui na minha frente está o repórter que vocês estão procurando. Pode mandar invadir o jornal para prendê-lo". Nada disso aconteceu, mas o Marquito acabou depondo em inquérito, sempre acompanhado por Ruy Mesquita, por atividades subversivas que nada mais eram do que bom jornalismo.


Com o Dentel insinuando algum tipo de ação na sede do Estadão, Júlio César Ferreira de Mesquita, o Julinho, que participava do comando da redação do Estadão, pagou para ver: mandou dobrar a segurança nos portões de acesso à sede da empresa e ninguém podia entrar sem autorização da diretoria. Ao mesmo tempo, Julinho coordenava a impressão de manchetes sobre o que acontecia em Brasília em cartazes, que eram carregados nas peruas do Estadão e distribuídos para as principais bancas de jornais da cidade. Os cartazes ficavam expostos do lado externo das bancas, mais um esforço para disseminar a informação apesar da censura.


Na véspera da votação da emenda Dante de Oliveira, um lembrete do Jornal da Tarde para os parlamentares, com foto da grande manifestação do Anhangabaú
Na véspera da votação da emenda Dante de Oliveira, um lembrete do Jornal da Tarde para os parlamentares, com foto da grande manifestação do Anhangabaú

Com a pressão aumentado, João Lara Mesquita acionou o renomado advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira, que passou a atender os chamados do Dentel, sempre defendendo calmamente que a Eldorado não estava descumprindo o que determinou o governo, pois ‘as informações vinham das redações do Estadão e do Jornal da Tarde’. O vai e vem telefônico continuou até o final da tarde, quando pararam as ligações. Com isso, a Eldorado passou a colocar no ar seus correspondentes em Brasília, pois àquela altura, a impressão era de que havíamos vencido pelo cansaço.


Continuamos a cobertura até a votação da Dante de Oliveira à noite, que precisava de 320 votos mas ficou nos 298, 22 abaixo do necessário, com 65 votos contra e 113 deputados que nem apareceram para votar. Foi um dia tenso que terminou em comemoração, tanto na redação da Eldorado na Major Quedinho quanto nas redações do Estadão e do JT na Marginal.


No dia seguinte, algumas surpresas. A primeira foi um pedido de entrevista da Revista Veja, sobre a atuação da Eldorado na cobertura da votação da emenda. João Lara Mesquita teve dúvidas, mas decidiu que receberíamos a Veja e, no mesmo dia, um repórter e um fotógrafo estiveram na Eldorado. E o João tinha razão: entrevistaram ele, eu, fizeram fotos, foram embora, mas nada foi publicado.


O histórico publicitário Carlito Maia brindou a redação da Rádio Eldorado com um bouquet de rosas vermelhas
O histórico publicitário Carlito Maia brindou a redação da Rádio Eldorado com um bouquet de rosas vermelhas

A segunda foi uma ligação de Antonio Augusto Amaral de Carvalho, o ‘seu Tuta’, diretor da Rádio Jovem Pan. Não tive o privilégio de conhece-lo pessoalmente, mas essa ligação nunca será esquecida. Foram diversos elogios do diretor da líder de audiência na época ao comportamento da Eldorado naquele dia, concluindo com a frase: ‘tinha que ser a rádio do Estadão’.


Por fim, logo cedo, foi entregue na redação da Eldorado um enorme bouquet de rosas vermelhas com um cartão de agradecimentos e elogios. Assinado pelo querido e saudoso publicitário Carlito Maia, na época executivo da Rede Globo e sempre um verdadeiro símbolo da defesa da cidadania.


*Adhemar Altieri, diretor executivo da MediaLink Comunicação Corporativa, foi diretor de jornalismo da Rádio Eldorado, repórter da TV Globo e diretor de telejornais regionais do SBT. No Canadá foi editor-chefe de telejornais do canal internacional de telejornalismo Newsworld International, editor de internacional do programa Sunday Morning, ambos da rede pública Canadian Broadcasting Corporation (CBC) e editor da CTV News, principal rede privada do país. Foi correspondente no Canadá e no Brasil da CBS News, principal rede de jornalismo de rádio e TV dos Estados Unidos e por 12 anos, comentarista do BBC World Service.

 
 
 

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