Por Adhemar Altieri*
Dando um último giro nos canais da TV na madrugada desta quarta-feira (03/07) antes de dormir, meu sono desapareceu quando me deparei com Pedro Bial entrevistando Gustavo Franco, Pedro Malan e Edmar Bacha. Mais um merecido registro dos 30 anos da introdução do Plano Real, com três de seus principais protagonistas. As lembranças vieram como uma avalanche e estranhamente, elas começam no Canadá, onde ouvi falar pela primeira vez do que viria a ser o Plano Real.
Era 1993 e o então ministro da economia, Fernando Henrique Cardoso, foi a Toronto para uma reunião com credores de vários países, para dar fim à dívida externa brasileira. Na época eu era editor de telejornais da rede pública canadense Canadian Broadcasting Corporation (CBC), mas tirei o dia para ir ao tradicional Park Plaza Hotel, hoje parte da rede Hyatt, para acompanhar a tão aguardada reunião a pedido do velho Jornal da Tarde, do Grupo Estado. Era o fim de um problema crônico, que tirava o sono dos brasileiros há muito tempo. Matéria essencial para o Brasil, nem tanto para a mídia canadense, que mal registrou o grande encontro.
Dias antes, liguei para o Brasil e marquei um horário para entrevistar FHC no Park Plaza, com ajuda da assessora e amiga Ana Tavares. No dia, acabei acompanhando a reunião decisiva de ponta a ponta – fui entrando, ninguém me parou nem perguntou se eu era jornalista e fiquei no salão repleto de banqueiros e representantes dos credores da dívida brasileira, até as assinaturas finais.
Na sequência, no horário combinado chegou ao saguão do hotel FHC, acompanhado de Paulo Renato Souza, talvez o último grande ministro da Educação do país, o então embaixador do Brasil em Washington, Paulo Tarso Flecha de Lima, e o embaixador brasileiro no Canadá, Sérgio de Queiróz Duarte. A conversa de mais de uma hora rendeu meia página no JT e ali surgiram, para mim, os primeiros sinais de um plano econômico, ainda sem nome, que se pretendia definitivo. De Toronto, FHC seguiu para Nova York, com os boatos já fortes sobre uma eventual candidatura à presidência, supostamente para tomar uma decisão sobre sair ou não candidato em 1994.
O velho Park Plaza Hotel em Toronto, hoje Park Hyatt
Implantado o Plano Real, veio a eleição e a vitória de FHC, com forte resistência de Lula e do PT que tratavam o Real como apenas mais um engodo rumo ao fracasso. Ainda no Canadá, pude sentir o gosto amargo da postura petista em uma visita de Lula a Toronto, acompanhado do assessor e ideólogo da política externa, Marco Aurélio Garcia – talvez mais conhecido anos depois pela cena do ‘top top’, flagrado que foi por uma câmera de TV quando fazia gestos questionáveis assistindo a uma reportagem sobre o acidente com o Airbus da TAM que matou 199 pessoas no Aeroporto de Congonhas em 2007.
Bem perto do velho Park Plaza, Lula palestrou no OISE, o Ontario Institute for Studies in Education, da Universidade de Toronto, para um público essencialmente de professores e estudantes, muitos vestindo camisetas de Che Guevara, alguns usando boinas e camisas verde oliva, ao estilo do revolucionário Marxista. Bem antes disso, conheci Lula como repórter da TV Globo e depois diretor de jornalismo da Rádio Eldorado, do Grupo Estado. Foram diversos contatos e entrevistas no Brasil e decidi, com alguns amigos brasileiros, ir ao evento e ouvir o que Lula tinha a dizer, logo após a derrota para FHC na eleição presidencial.
Com ajuda de um intérprete, Lula desenhou um Brasil a caminho do mais profundo precipício. Um país quebrado e sem perspectivas, onde os índices de mortalidade infantil eram piores do que os do Haiti. Mesmo com o Plano Real em pleno vigor e começando a produzir resultados, para ele era apenas mais um pacote desenhado para enganar o povo. Segundo Lula, enquanto FHC naquele momento estava em Paris se divertindo e comemorando a vitória eleitoral, o calvário do povo brasileiro seguia interminável. Para concluir, Lula disse que se o eleito fosse ele e não FHC, o destino do país seria muito mais promissor.
Durante as perguntas da plateia, dois brasileiros tentaram questionar o conteúdo do discurso mas as vaias não permitiram que as perguntas fossem concluídas. Ao final do evento, tietagem explícita: vários estudantes subiram ao palco para pedir autógrafos a Lula. Enquanto ele assinava, subi também para cumprimenta-lo. Lula notou a minha presença a poucos metros e ocorreu o seguinte diálogo, ele ainda assinando autógrafos:
Lula: Ei, gordo, o que você está fazendo aqui?
Eu: Eu moro aqui Lula.
Lula: E quando você volta para o Brasil?
Eu (rindo): Depois de te ouvir, acho que não volto nunca mais...
Lula (também rindo): Peraí, não é bem assim!
Eu (ainda rindo): Então chama esse pessoal de volta pra você explicar que não é bem assim...
Discursos nessa linha, desenvolvidos por Garcia, eram praxe toda vez que Lula palestrava no exterior, parte de uma estratégia do petismo portanto não houve surpresa com o tom destrutivo. Exceto que naquele momento, as coisas evoluíam em outra direção, que Lula e o petismo se recusavam a admitir e reconhecer. Não foi o meu caso. Naquele momento, em grande medida devido ao que já era possível observar com o Plano Real, eu pensava seriamente em regressar ao Brasil com minha família.
Foi o que fiz em 1997 depois de 21 anos vivendo e trabalhando no Canadá, decisão acelerada quando veio o convite de João Lara Mesquita para assumir pela segunda vez a direção de jornalismo da Rádio Eldorado. Não apenas eu, mas centenas de brasileiros que aterrissaram no Canadá fugindo do desastre que foi a presidência de Fernando Collor de Mello, também refizeram as malas e retornaram ao Brasil naquele período. No meu caso, foi uma decisão de vida.
De volta ao país, os impactos do Plano Real falavam por sí e tornavam inócuas boa parte das críticas. Nada é perfeito, mas a realidade derrubava argumentos negativos e calava os detratores. Quem se interessou em examinar com seriedade o que foi feito, de forma mais detalhada, concluía que o Real foi uma vitória, acima de tudo, da disciplina. Era muito mais do que apenas uma nova moeda. Contra toda sorte de resistências, principalmente ideológicas, manteve-se o rumo traçado e os resultados poderiam ter sido muito mais abrangentes e positivos se o processo fosse preservado e não gradativamente alterado e esvaziado, a partir da chegada de Lula à presidência em 2003.
Talvez uma das principais lições que fica, 30 anos depois da introdução do Plano Real, é o exemplo que foi dado, contrariando muito do que se observa hoje em um ambiente tóxico e polarizado, que não é exclusividade do Brasil mas aqui persiste com força e para prejuízo de todos. O Real mostrou que com planejamento e persistência, é possível levar adiante uma estratégia de grande complexidade, mesmo sofrendo críticas pouco objetivas e longe de pragmáticas. O público, mesmo com dúvidas sobre este ou aquele detalhe, foi perfeitamente capaz de captar o alcance do plano e onde se pretendia chegar, mesmo que muitos não entendessem por completo o que era, afinal, uma URV.
O Plano Real deixa, entre seus legados, muito mais que o fim da hiperinflação. Deixa uma certeza que hoje parece ser dúvida para muitos brasileiros: a de que existem, sim, brasileiros diferenciados e competentes, capazes de desenhar estratégias arrojadas e estabelecer rumos que permitam avançar e beneficiar amplamente, sem que os extremos ideológicos desviem os objetivos maiores para a demagogia e o populismo barato.
A reconquista dessa certeza significa prestigiar a capacidade, a competência e o mérito. A busca por aqueles que fogem dos extremos ideológicos é o primeiro passo. É a busca pelos brasileiros diferenciados, como aqueles que criaram e levaram adiante um plano econômico que, em muitos momentos, parecia um sonho totalmente impossível.
*Adhemar Altieri, diretor executivo da MediaLink Comunicação Corporativa, foi diretor de jornalismo da Rádio Eldorado, repórter da TV Globo e diretor de telejornais regionais do SBT. No Canadá foi editor-chefe de telejornais do canal internacional de telejornalismo Newsworld International e editor de internacional do programa Sunday Morning, ambos da rede pública Canadian Broadcasting Corporation (CBC) e editor da CTV News, principal rede privada do país. Foi correspondente no Canadá e no Brasil da CBS News, principal rede de jornalismo de rádio e TV dos Estados Unidos e por 12 anos, comentarista do BBC World Service.
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