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O exemplo que veio de Recife

por Adhemar Altieri*


Uma viagem por tempos em que sobrava talento e comprometimento nas grandes redações do jornalismo brasileiro


O próximo dia 27 de abril marca o segundo aniversário da morte do jornalista Carlos Garcia, mais um entre as dezenas de milhares de perdas para a Covid-19. Falecido aos 87 anos, era um verdadeiro ícone do jornalismo nacional, pioneiro do que hoje é conhecido como ‘jornalismo de dados’ e histórico chefe da sucursal do Estadão em Recife. Garcia exigia precisão e qualidade nas matérias produzidas por sua equipe que, com frequência, eram destaque no Estadão de domingo, espaço desejado por qualquer jornalista que levasse a sério o que fazia. Por insistir em contar verdades sobre o que estava por trás da seca, fugindo dos estereótipos que caracterizavam a cobertura do Nordeste que chegava aos grandes veículos do Sul, foi interrogado incontáveis vezes, detido e torturado durante a ditadura militar.


Garcia já era tudo isso quando o conheci em 1983, mas eu não sabia de nada sobre ele quando o encontrei na capital pernambucana. Fui lá pedir o engajamento dele e da equipe da sucursal no projeto jornalístico que estávamos implantando na Rádio Eldorado de São Paulo. Na época, o Estadão mantinha sucursais em várias das principais capitais do país, as maiores em Brasília e no Rio de Janeiro.


Peça central do projeto na Eldorado era a integração, no ar, dos outros veículos do Grupo Estado – Estadão, Jornal da Tarde e Agência Estado. Garcia me recebeu com enorme cortesia, ele um veterano respeitado, eu com meus 26 anos e mal começando a construir a carreira. A ideia não era tão simples de emplacar com os adeptos das ‘pretinhas’. A visão que prevalecia com a grande maioria dos profissionais do Grupo era que jornalismo se escrevia e publicava em papel. Rádio passava muito longe do que eles percebiam como jornalismo. Fazer rádio, então, estava fora de qualquer expectativa.


Só muito tempo depois da primeira conversa eu entendi a importância da contribuição do Garcia para esse projeto, que acabou gerando uma resposta positiva não só para a Eldorado, mas para o Grupo Estado inteiro. Ele não só me atendeu e prestou atenção no que eu queria, às vezes sorrindo e talvez imaginando ‘esse garoto deve estar sonhando’, mas gostou da iniciativa, engajou toda a sucursal de Recife e participou, ele próprio. Sim, ele telefonava para a Eldorado e gravava reportagens, sempre com a assinatura padrão no final: Carlos Garcia, Eldorado, Recife”.


A adesão do Garcia, percebi com o tempo, chamou muita atenção dentro do Grupo Estado. O respeito que ele merecia de todos também funcionava para derrubar obstáculos, principalmente entre os que achavam que telefonar para a Eldorado seria um estorvo sem maiores consequências. Ou, que aquela ideia de colocar gente ‘de jornal’ no rádio não iria a lugar algum.


Com o apoio do então diretor da Eldorado, João Lara Mesquita, acabei indo a todas as sucursais e em todas, com o tempo, a ideia acabou sendo bem recebida e executada. O conjunto de conversas foi um aprendizado fantástico sobre jornalismo e a própria empresa: Carlos Chagas, Jorge Rosa e José Márcio Mendonça em Brasília, Ayrton Baffa, Altair Baffa - o ‘baffinha’, e Antonio Cunha no Rio, o saudoso Dirceu Pio em Curitiba, Warley Ornellas em Belo Horizonte, Carlos Navarro em Salvador, José Aparecido Miguel na sucursal de Santos, Germano de Oliveira no ABC e seu irmão Francisco na sucursal de Porto Alegre.


Chegamos a ter mais de 100 colaboradores pelo Brasil, pois fomos além das sucursais e convidamos também correspondentes dos jornais e da Agência Estado em cidades onde não havia sucursal. Com o tempo, as redações em São Paulo também se interessaram e muitos, principalmente da Geral do Estado e do JT, aderiram. E eram todos colaboradores mesmo, pagos por matéria – cada matéria recebida era anotada e no final do mês, em tempos sem ‘online’ e ‘Pix’, cada um recebia um ‘chequinho’ da Eldorado. Eram tempos de inflação galopante, então a cada três meses era preciso ir à sede, na Marginal, pedir autorização para ajustar os valores pagos. O dinheiro virava pó e era preciso subir o valor por matéria ou o esquema todo correria o risco de entrar em colapso.


Foi um período muito rico, em que a Eldorado dava ‘furos’ todos os dias e em todas as frentes de cobertura. Sem exagero, não havia emissora no país capaz de correr junto com a Eldorado. A emissora virou prioridade de todas as ‘rádio-escutas’, não só de outras emissoras de rádio mas das principais empresas jornalísticas, que gravavam a Eldorado 24 horas por dia. A ponto de acertarmos com o Estadão que os furos de maior repercussão só entrariam no ar na Eldorado a partir do noticiário das 10 da noite, para que a concorrência não pegasse.


O projeto cresceu e atraiu também os profissionais mais sênior – editorialistas e colunistas, que na Eldorado atuavam como comentaristas. Os já citados José Márcio Mendonça e Carlos Chagas, Marcos Wilson, Mário Marinho, Marco Antonio Rocha, Percival de Souza, Celso Ming, Roberto Godoy e Antonio Carlos de Godoi foram comentaristas daquele período dos anos 80 e 90. Tempos depois, percebemos que aquele período marcou a primeira experiência fora da mídia impressa para muitos repórteres e comentaristas, que depois partiram para o rádio e a TV em grande estilo.


Vai ser difícil citar nomes e não esquecer de alguns, porque era realmente muita gente participando. Mas aqui vão alguns exemplos: do Rio de Janeiro Domingos Meirelles, que depois apresentou programas de sucesso na Rede Globo e na Record, Fernando Molica, que acabou na Globo e mais recentemente na CNN Brasil, Maurício Menezes, hoje famoso como humorista e criador do ‘Plantão de Notícias’, Ruy Portilho, organizador do Prêmio Esso por 23 anos, Hélio Contreiras e Altair Baffa; de Brasília Silvia Caetano, Sérgio Chacon, Bartolomeu Rodrigues – o ‘Bartô’, José Fonseca Filho, Murilo Murça e Jocimar Nastari; de Curitiba, um luxo – além de Dirceu Pio tinhamos José Laurentino Gomes, hoje destacado autor de obras de primeiríssima qualidade e Cila Shulman, executiva de uma grande empresa especializada em pesquisas;


Das redações em São Paulo, alguns viraram colaboradores quase diários: Luiz de Souza Queiroz - o ‘Bebeto’, Wanderlei Midei, Castilho de Andrade, Antonio Tozzi – o ‘Tonhão’ que hoje vive nos Estados Unidos, Sérgio Leopoldo Rodrigues, Fátima Turci e Roberto Avallone.


Na cobertura internacional, outro diferencial marcante – a Eldorado chegou a ter 14 correspondentes internacionais, a ponto de a Internacional do Estadão, ocasionalmente, pedir o contato do correspondente da Eldorado quando precisava de matérias desses países. Entre os principais, muitos que estrearam fora da mídia impressa conosco: Moisés Rabinovici em Jerusalem, depois Paris e Washington, Eliane Gamal em Nova York, Napoleão Sabóia em Paris, Zeca Santana em Londres, Sandra Basile em Montreal e Wilson Reganelli em Berna.


Toda essa estrutura tinha uma lógica: a criação da primeira rede nacional de rádiojornalismo do Brasil. Preparamos tudo para o grande momento, negociamos a estrutura com a Embratel, que nesses tempos sem internet era o único caminho para transmissões de longo alcance, alinhamos os primeiros patrocinadores ‘nacionais’ e batizamos o projeto de ‘Rede Estado de Rádiojornalismo’. Que não chegou a existir por uma decisão do Grupo, que entendeu que o processo poderia ser prejudicial para a distribuição de notícias pela Agência Estado e, no limite, poderia prejudicar o carro-chefe da empresa, o Estadão. Me lembro de minha reação em 1985 quando avisado: se não fizermos, alguém vai fazer. Alguns anos depois, em 1991, foi criada a CBN.


 

Carlos Garcia com o então governador de Pernambuco, Jarbas Vasconcellos


 

Arrisco dizer que sem a acolhida e o ‘de acordo’ de Carlos Garcia, essa verdadeira coleção de talentos do nosso jornalismo concentrada em uma só emissora de rádio talvez até acontecesse da mesma forma mas seguramente, teria sido mais difícil e demorado. Muito mais do que um colaborador de Recife, Carlos Garcia virou um exemplo e estímulo para muita gente que fez com que o projeto avançasse. Virou também um grande e querido amigo de frequentes telefonemas para trocar informações sobre os principais temas daquela época.


Talvez ele tenha surpreendido até a sí próprio quando pegou no telefone pela primeira vez, ligou ‘a cobrar’ para a Eldorado em São Paulo, e gravou sua primeira matéria. Garcia acabou sendo também Secretário da Cultura de Pernambuco no governo de Jarbas Vasconcellos, o que surpreendeu absolutamente ninguém que sabia alguma coisa sobre o histórico e a formação desse excepcional jornalista com J maiúsculo.


A Rádio Eldorado e eu particularmente, seremos sempre devedores a Carlos Garcia pelo impacto que ele causou, atraindo muita gente que hesitava ao ouvir a nossa proposta e reavaliava tudo ao ouvir o Garcia ‘falando no rádio’. Ele executou com perfeição e estimulou outros para que fizessem, exatamente, o que propomos. Como se espera de um grande profissional.


*Adhemar Altieri, diretor executivo e fundador da MediaLink Comunicação Corporativa, foi diretor de jornalismo da Rádio Eldorado de 1982 a 1987 e de 1997 a 2001. Foi também repórter da TV Globo e diretor de telejornais regionais do SBT. No Canadá foi editor-chefe de telejornais do canal mundial de telejornalismo Newsworld International, da rede pública CBC, editor de internacional do programa de rádiodocumentários Sunday Morning, e editor de internacional da CTV, principal rede privada do país. Foi ainda correspondente no Canadá e no Brasil da CBS News, maior rede de jornalismo de rádio e TV dos Estados Unidos, e por 12 anos comentarista do BBC World Service.

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