Artigo publicado originalmente na página 2 do jornal O Estado de S. Paulo de 23 de dezembro de 2019, por Frei Luciano, gestor geral da Fraternidade - Federação Humanitária Internacional, à época cliente da MediaLink
Frei Luciano ao centro, com a voluntária Leda Eira e a Madre Maria Cleonice à esquerda, e os professores e colaboradores da Fraternidade, Takako Matsumura Tundisi e José Galízia Tundisi, à direita.
por Frei Luciano*
A doação de uma luxuosa Lamborghini Huracán ao Papa Francisco virou notícia mundialmente em 2017. Por determinação do Papa, o veículo superesportivo italiano foi leiloado em maio de 2018 e rendeu cerca de R$3 milhões. Os recursos foram dedicados integralmente pelo Vaticano a causas humanitárias em regiões de extrema necessidade, especialmente em apoio a famílias pobres no Iraque e na África.
Uma doação generosa, que produz receita para importantes obras assistenciais, parece algo trivial e simples de acontecer. Em muitos países de fato é assim e doadores respondem com atos de generosidade que muitas vezes viram manchete. Foi assim quando a histórica Catedral de Notre Dame, em Paris, recebeu doações expressivas após o incêndio que destruiu parte da estrutura em abril deste ano. As contribuições chegavam de todas as partes do mundo, inclusive de alguns notáveis brasileiros.
Papa Francisco com a Lamborghini doada
Seria natural e justo que os mais abastados participassem com contribuições de peso, como se vê em outros países. Entendemos melhor o que atrapalha isso no Brasil no início deste ano, quando ocorreu nosso exemplo similar ao da Lamborghini doada ao Papa. Um empressário, frequente apoiador do trabalho de nossa instituição, a Fraternidade – Federação Humanitária Internacional (FFHI), nos ofereceu um veículo da mesma categoria como doação. Rapidamente desenvolvemos estratégias para utilizar o veículo e gerar recursos, pois todas as nossas atividades são sustentadas por doações, quase sempre de pequenos valores. Exposições públicas, campanhas em parceria com a mídia, culminando com um sorteio, teriam repercussão nacional e poderiam arrecadar bem mais do que o valor do bem doado, como ocorreu no caso da Lamborghini.
Seria uma contribuição inestimável para as inúmeras ações de nossa entidade, que incluem missões humanitárias pelo Brasil e o mundo, quase sempre para auxiliar em situações extremas. Do terremoto no Nepal à saga dos refugiados sírios e enchentes no Uruguai, missionários da Fraternidade já cumpriram 24 missões humanitárias pelo planeta. No Brasil estivemos em Mariana e Brumadinho, e desde 2016 sustentamos um esforço permanente em Roraima, administrando cinco abrigos para milhares de refugiados venezuelanos, que ainda chegam ao Brasil diariamente às centenas. Nada disso seria possível sem doações.
Em 30 anos, nossas iniciativas já envolveram mais de 60 mil voluntários. Imaginamos que o carro doado seria uma ajuda vital, mas o entusiasmo inicial virou decepção quando conhecemos os obstáculos para que qualquer plano envolvendo o veículo fosse viabilizado. Nossos colaboradores na área jurídica nos mostraram que o custo e o esforço exigidos para simplesmente receber a doação do veículo e depois executar nossas ideias estavam além de nossas condições e estrutura.
O episódio nos ajudou a entender por que pessoas que poderiam apoiar de forma impactante esforços como os nossos, muitas vezes decidem não se envolver. Leis atravancadas, tributação desproporcional e a burocracia excessiva e redundante acabam transmitindo uma sensação negativa e lamentável, que transforma um ato digno de aplausos em motivo para questionamento e suspeita. Estranhamente, em vez de algo benéfico para a sociedade, o grande doador acaba tratado com desconfiança, quase como um criminoso. Como se o fato de ter a condição de doar sinalizasse que algo, necessariamente, estaria irregular em sua vida.
Frei Luciano, gestor geral da Fraternidade
A experiência com o carro esportivo nos abriu uma janela para algo que afeta todas as instituições que dependem da generosidade humana, como a nossa. Impossibilitados de utilizar o bem doado para gerar o máximo de recursos, fomos obrigados a interromper o próprio ato da doação. O doador optou por tentar, ele mesmo, vender o veículo e transferir os recursos obtidos para a Fraternidade. Fatalmente o valor arrecadado será inferior ao que poderia ser, fossem nossas leis e excessivas exigências burocráticas mais parecidas com as que facilitam e encorajam doações em diversos países.
Esta é uma reflexão essencial logo após o Dia de Doar, em 3 de dezembro, ligado ao movimento Giving Tuesday criado nos Estados Unidos e com o período de festas de fim de ano se aproximando. Realizado no Brasil desde 2014, o Dia de Doar é um estímulo importante para que mais pessoas escolham boas causas e façam doações regularmente, não apenas quando desastres acontecem. Mas esse objetivo só poderá ser atingido no Brasil se acontecerem, paralelamente, mudanças profundas que simplifiquem e integrem as exigências para que grandes doadores se sintam mais à vontade para contribuir.
Com isso, os mesmos brasileiros que doaram para a reforma de Notre Dame talvez doem também no Brasil. Em episódios como o incêndio que destruiu o Museu Nacional no Rio de Janeiro em setembro de 2018, talvez tenhamos uma resposta decisiva para que perdas tão dramáticas para o patrimônio cultural brasileiro sejam recuperadas mais rapidamente, com a justa e proporcional colaboração daqueles que podem, devem e desejam colaborar.
* Frei Luciano é gestor geral da FFHI, está na Comunidade Figueira desde 1989 e dedica-se ao desenvolvimento das Comunidades e de suas principais atividades. As Missões Humanitárias são as demandas mais relevantes da FFHI, considerando as situações emergenciais e crises humanitárias que se deflagram no mundo.
Artigo original publicado no jornal O Estado de S. Paulo:
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