*por Adhemar Altieri
Pelé com José Altieri Jr. no colo em 22 de junho de 1971, na porta do Lord Simcoe Hotel, um dia antes de jogo Santos 2 x 1 Bologna em Toronto
Edson Arantes do Nascimento partiu e o mundo ainda não parou de rememorar detalhes da vida emocionante e multifacetada do maior ícone do futebol mundial. O excelente documentário ‘Pelé Eterno’ (2004), dirigido por Aníbal Massaini Neto, é uma verdadeira viagem válida até para quem não tem qualquer interesse em futebol. As visualizações devem estar batendo algum recorde – a obra pode ser assistida gratuitamente no GloboPlay.
E a avalanche de homenagens vem de toda parte, de anônimos e celebridades de todos os cantos do planeta, ligados ou não ao futebol. É bom que isso continue acontecendo, para atenuar algumas bobagens ditas por gerações mais novas, que não tiveram o privilégio de ver e sentir o que era ter alguém tão fantástico e diferenciado como Pelé entre nós. Acabam concluindo que há algum exagero no que é dito sobre Pelé. Não há...
Fora de campo, Pelé teve outro impacto, que para muitos pode ter passado batido mas de certa forma, tem tanta importância quanto os feitos dentro de campo. Brasileiro mais reconhecido do mundo, talvez o ser humano mais identificado espontaneamente e admirado do planeta, a simples existência de Pelé mudava tudo quando alguém, em qualquer país, dizia que é brasileiro. Experimentei e senti todo o efeito Pelé a partir de 1971, quando tinha 14 anos e minha família se mudou para o Canadá.
Há muito tempo o Brasil se esmera em não trabalhar bem sua imagem perante o mundo e para cada década, invariavelmente temos algo negativo que se sobressai a respeito do país. Nos anos 70 o destaque era algo que, apesar de algumas campanhas do governo na mídia internacional, dificilmente deixaria de ser prejudicial: era o auge do regime autoritário que governava o país, produzindo olhares e impressões negativas além de notícias que apresentavam o país como um lugar sombrio, perigoso e sem grandes perspectivas apesar do eterno potencial do país-gigante. Mas, em 1971, a lembrança ainda recente da vitória brasileira liderada por Pelé na Copa do Mundo de 1970, no México, era bem mais poderosa.
Nossa família foi morar em um bairro onde predominava a comunidade italiana, muito grande em Toronto. Na escola, a vida não era fácil. A maioria de ítalos não só não perdoava a derrota na Copa do México como não se conformava que eu, com sobrenome italiano, não me declarasse italiano. Essa era a prática no Canadá, que há décadas estimula a imigração e por isso, tem em Toronto uma das cidades com maior diversidade de origens do mundo.
Lá, a maioria dos filhos e netos de imigrantes se identifica com dupla nacionalidade e para os de origem italiana, no máximo eu deveria dizer que era um ‘Italian Brazilian’, com Itália na frente, como eles próprios faziam ao se identificar como ‘Italian Canadians’, mesmo sendo nascidos no Canadá. Como brasileiro eu era uma raridade e virei motivo para procurarem formas todos os dias de diminuir e menosprezar a vitória brasileira sobre a Itália em 1970, mas era só dizer Pelé que todos os argumentos acabavam, sem maiores discussões e quase sempre com sorrisos. Pelé simplesmente não deixava espaço para dúvidas - Pelé era o que era e não adiantava espernear...
O pequeno Varsity Stadium, no centro de Toronto, onde o Santos de Pelé jogou duas vezes. Aqui, Pelé marcou seu milésimo gol com a camisa do Santos
No final daquele ano escolar, em junho, os jornais anunciavam que Pelé e o Santos Futebol Clube viriam a Toronto para um amistoso contra o Bologna, da Itália. Eram pouquíssimos brasileiros vivendo em Toronto, não havia nem como organizar alguma torcida. Comprei entrada para o jogo com muita antecedência pois logo se esgotaram – o pequeno Varsity Stadium, da Universidade de Toronto, acomoda menos de 20 mil pessoas e em uma cidade com gente de todas as partes do mundo que gosta de futebol, estava claro que não haveria espaço para a demanda.
Primeiro, eu e os poucos amigos brasileiros pensamos em encontrar os jogadores e, claro, ver Pelé de perto. Logo descobrimos o hotel onde o time estava hospedado, o que foi fácil pois desde cedo havia jornalistas no saguão e na rua por toda parte. Era o velho Lord Simcoe, esquina da King St. com University Ave, hotel que foi demolido há muitos anos e naquela esquina está o edifício-sede de uma grande empresa de seguros.
Eram tempos em que diferenças entre torcidas não levavam facilmente a atos de violência. Compramos uma camisa, calção e meia brancos, e desenhamos com uma caneta preta o distintivo do Santos e o número 10 nas costas. Vestimos meu irmão, que tinha 2 anos e meio, e soltamos ele no saguão do hotel um dia antes do jogo.
O velho Lord Simcoe Hotel, onde o Santos ficou hospedado em Toronto nos anos 1970
De repente, abre-se o elevador e sai o Rei, que viu meu irmão, levantou os braços e pegou ele no colo... Foi a deixa para o grupo de brasileiros se aproximar. Pelé conversava como se nos conhecesse, tranquilo, sem as frescuras tão comuns entre celebridades e sem pressa para ir embora. Aliás, olhando para a vida de Pelé, é muito difícil identificar um ato questionável dele ao ser procurado por desconhecidos, algo que para ele fazia parte do dia a dia – Há quem diga que não há alguém que tenha concedido mais autógrafos do que ele.
Na hora de registrar o momento, tínhamos em mãos uma Kodak Instamatic, que os mais jovens talvez nunca tenham conhecido. Popular na época, a câmera utilizava cubos de flash, que iam sendo queimados a cada foto. Não tínhamos o cubo e a foto interna não daria certo. Pedi, então, ao Pelé, que fosse conosco até a rua para fazermos fotos dele com meu irmão na luz do dia. Pedi esperando resposta negativa, mas o maior do mundo topou, sem qualquer sinal de contrariedade. E assim foi feita a foto que abre este artigo...
Fui sozinho ao jogo, vestindo uma camisa do Palmeiras, de mangas compridas, número 4, usada em jogo pelo lateral esquerdo Dé e enviada ao Canadá por meu saudoso tio Nicola. E levei uma bandeira do Brasil. Colocar a camisa do Santos no irmãozinho indefeso, tudo bem, mas eu fui lá torcer pelo Pelé e pelo Brasil, vestido como sempre ia aos estádios, de verde.
Pierre Trudeau, Primeiro Ministro do Canadá, dando o pontapé inicial no jogo Santos 2 x Bologna da Itália 1, em Toronto, 23 de junho de 1971
Como se esperava, o estádio acabou invadido e centenas foram para dentro do gramado. Fileiras de pessoas ombro a ombro davam a volta no campo, encostadas na linha lateral e linha de fundo, na primeira fileira agachados, na segunda meio-agachados e na terceira em pé. Logo chegaram policiais a cavalo, posicionados dentro do campo para evitar problemas ainda maiores. Afinal, o pontapé inicial da partida foi dado pelo então Primeiro Ministro do Canadá, o magnético Pierre Trudeau, muito popular entre os imigrantes.
Assisti ao jogo de trás do gol, ameaçado de apanhar do início ao fim e sendo poupado da surra talvez porque um dos italianos reconheceu minha camisa, segundo ele do ‘Palestra Itália’, e convenceu os outros a me deixar torcendo em paz. Piorou quando Pelé marcou o gol da vitória de 2x1, bem na nossa frente. Faltando alguns minutos para o fim do jogo, pulei dentro do campo e fui para o lado de um dos policiais a cavalo, que logo percebeu o que estava acontecendo e me disse para ficar perto dele.
Essas cenas eram comuns quando o Santos de Pelé jogava em qualquer lugar do mundo, com invasões e policiamento reforçado, confusões na entrada e na saída. Mas o foco de tudo não era o time nem qualquer outro jogador. Todos queriam estar perto de Pelé, se possível tocar nele, conhecer, olhar nos olhos desse verdadeiro mito. Era o único trunfo que tínhamos para combater a imagem negativa do país. Com Pelé, todos colocavam de lado as más notícias e a memória mais forte passava a ser a do Rei.
Pelé emtrando em campo pelo New York Cosmos, no Varsity Stadium em Toronto
O Santos, acostumado com tudo isso, tinha um esquema especial para que Pelé pudesse sair de campo: faltando pouco para terminar o jogo, vinha um lançamento na ponta esquerda para o Pelé, o que já era estranho pois ele jogava pelo meio e não junto à linha lateral. Pelé corre como um ponta-esquerda, parece que vai dominar a bola e de repente dá uma guinada para a esquerda, sai de campo saltando por cima da fileira de pessoas agachadas e corre para o túnel. Depois me explicaram que ou ele fazia isso, ou não conseguiria sair de campo. Era ‘normal’.
Pelé voltaria a Toronto mais algumas vezes. Em 1972, o Santos enfrentou o Metros-Croatia, time da NASL, a liga norte-americana. Lá fui eu, camisa do Palmeiras e bandeira do Brasil torcer pelo Santos de Pelé. O time local fez 2x0 em 10 minutos e todos ao meu redor começaram a rir, dizendo que o Pelé ‘já era’. Mas o jogo empatou, Pelé marcou de pênalti o 3x2 e ainda teve mais um – final, 4x2. Esse jogo tem uma peculiaridade que poucos conhecem: o gol de Pelé, de pênalti, foi o milésimo dele com a camisa do Santos. Assim como o milésimo da carreira, contra o Vasco no Maracanã, que assisti pela TV com meu avô, também foi de pênalti e foi no centenário Varsity Stadium no centro de Toronto.
Depois, Pelé voltou a Toronto já como jogador do New York Cosmos, gerando o mesmo alvoroço, correria por ingressos e atenção de uma mídia esportiva que não dava a mínima para futebol, mas tinham que cobrir Pelé. Quando iniciei minha carreira no jornalismo em 1978, trabalhava para a 590/CKEY, uma das principais emissoras de rádio da cidade. Eu cobria política a partir da Prefeitura de Toronto, mas toda vez que aparecia alguma coisa ligada a futebol, lá vinha o diretor de esportes, o velho Jim Hunt, perguntar se eu topava cobrir. Hunt era ex-jogador de ‘football’, o da bola oval. Como jogador ganhou duas vezes a Grey Cup, equivalente canadense do Super Bowl e foi nomeado para o Hall da Fama desse esporte. Ele não entendia o motivo de tanto interesse por Pelé, mas como grande jornalista que era, sabia que era preciso cobrir. E era melhor se alguém que entendesse algo daquele esporte fizesse a cobertura.
Jim Hunt, lendário diretor de esportes da rádio 590/CKEY e ex- jogador profissional de 'football', o da bola oval. Quando o assunto era Pelé e o da bola redonda, o 'soccer', ele convocava o repórter brasileiro...
Assim, acabei cobrindo jogos do Cosmos com Pelé e outros brasileiros, como Marinho Chagas e Carlos Alberto, o capitão do tri, e o centroavante italiano Chinaglia. O também brasileiro Júlio Mazzei fazia parte do Cosmos e foi técnico do time por um período, mas não me lembro se ele já era o técnico durante alguma dessas idas a Toronto. O que me lembro é que o Cosmos tinha astros globais de primeira grandeza no time, mas ninguém, em nenhum momento, chamava atenção e puxava o público e a mídia como o Rei Pelé, que sempre concedia entrevista coletiva totalmente dedicada a ele, e não ao Cosmos. Nessas coletivas, os colegas de outros veículos sabiam que eu era brasileiro e me procuravam depois, para confirmar detalhes e não publicar nada errado. A maioria deles entendia pouco ou nada sobre futebol.
Durante toda a minha vida ouvi falar de Pelé, vi Pelé jogando e senti o efeito de se ter um Pelé, principalmente durante os 25 anos de vida fora do Brasil. Agora, começo a sentir a dificuldade e a tristeza que será me acostumar com a nova realidade, de não ter mais Pelé entre nós. Aprendi muito cedo o que era Pelé, com 8 anos de idade. Meus tios apareceram em casa para me levar a um jogo de futebol. Palmeiras joga com quem? Não é jogo do Palmeiras, é Santos e Juventus – vamos até a Rua Javari para ver Pelé. Torcedores de todos os times queriam ver Pelé, também no Brasil.
É como tantos já disseram e devem repetir por muito tempo: Edson Arantes do Nascimento se foi, mas Pelé, esse nunca irá a lugar algum. Ou como disse Andy Warhol, em vez de 15 minutos, no caso de Pelé serão 15 séculos de fama. No mínimo. Como no título do documentário, será sempre ‘Pelé Eterno’. De minha parte, agradeço ao Rei Pelé por tudo, pelo espetáculo que foi cada jogo dele que assisti, por ter feito tudo primeiro no futebol, e por ter proporcionado a um jovem brasileiro longe de casa uma forte injeção de orgulho toda vez que seu nome era citado.
Ao Rei, muito obrigado.
*Adhemar Altieri, diretor executivo da MediaLink Comunicação Corporativa, viveu no Canadá e nos EUA por 25 anos, iniciando a carreira de jornalista na mídia canadense com passagens pelas principais redes do país, a pública CBC e a privada CTV.
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