por Adhemar Altieri*
Um vagão de metrô lotado diz muito sobre para onde caminha a televisão. A maioria viaja em silêncio, com fones de ouvido, concentrada em algo que, até pouco tempo, só estava disponível na TV da sala. Filmes, seriados, novelas, debates, telejornais, segmentos longos ou pontuais. Uma avalanche chegando aos celulares, como os iPods e Walkmans de gerações passadas, agora turbinados com imagens e interatividade.
A cena no metrô ilustra bem a erosão implacável da TV convencional acontecendo no Brasil – em ritmo menos acelerado do que em outros países, mas nos mesmos moldes. O processo acompanha a inexorável proliferação da oferta de conteúdos, de variedade mirabolante e fontes diversas, tudo casado com a mobilidade.
Cada vez mais, as atrações chegam via streaming, das próprias emissoras convencionais que já enxergaram a tendência e de plataformas dedicadas como Netflix, Amazon, Apple, Disney, Hulu e tantas outras – numerosas, especializadas, nacionais e globais, gratuitas ou por assinatura. A oferta segue a demanda e as duas não param de crescer.
A origem do conteúdo também pode ser você, em canal próprio, que leva poucos minutos para criar e lançar em diversas plataformas. Em projetos ‘solo’ ou na comunicação corporativa, tomar posse de seu próprio conteúdo é um caminho sem volta, já adotado por indivíduos, empresas e instituições mundialmente.
Conteúdos em vídeo crescem nas redes perto de 40% a cada ano. Só no YouTube já são mais de 31 milhões de canais, dedicados a um leque impressionante de assuntos, dos mais óbvios aos extremamente segmentados. A decisão da Anatel anunciada no início de setembro, liberando a venda de assinaturas de canais de TV por streaming, via internet, deve acelerar ainda mais essa onda. Os mesmos canais do cabo poderão ser comprados, em pacotes ou individualmente, e o preço deve cair pois a estrutura para captar o canal será do próprio consumidor.
O visionário empresário canadense das comunicações Moses Znaimer, criador de conceitos e formatos de TV hoje espalhados pelo mundo, como a videografia e o videoclip, me disse durante uma conversa nos anos 90: “Por que não tantos canais de televisão quanto há livros?” Parecia um devaneio, mas o fato é que há quase três décadas, ele descreveu com precisão o que temos hoje.
Quando a TV a cabo chegou ao Brasil, a TV convencional conseguiu segurar a invasão de sua praia. O cabo permaneceu caro para os padrões brasileiros, sem se consolidar como em vários países onde virou majoritário. Está em queda por aqui desde 2014, prejudicado também por toda sorte de ‘gambiarras’ que roubam o sinal. Em 2019, de uma base de 20 milhões de assinantes, pequena para a população brasileira, mais 1,7 milhão cancelaram suas assinaturas. As perdas continuam em 2020.
Para onde vai esse público? Em maio deste ano, o Ibope mostrou que, pela primeira vez, serviços de streaming superaram os canais a cabo em audiência no horário nobre, das 19h à meia-noite, somando 6,9 pontos de audiência contra 6,7 do cabo. Índice engrossado também pela maioria que não tem cabo, insatisfeita com o que a TV aberta oferece e em busca de variedade, sem o preço do cabo.
Para quem já entendeu esse novo mundo, a TV de mão única que conhecemos há décadas, dos programas com hora marcada para assistir, já é um dinossauro. Vai ter de se reinventar profundamente para não repetir a situação dramática das mídias impressas – a maioria hoje luta para sobreviver. No Brasil, o reposicionamento mais significativo é o da GloboPlay, plataforma onde a Rede Globo espera reconquistar, gradativamente, o público que já sabe que vai perder na TV aberta e no cabo.
Jornalismo, esporte ao vivo e eventos em tempo real, principalmente os de grande porte com potencial de interatividade, surgem como principais formas de sobrevida para as grandes redes nacionais. O embate vai ser pesado, pois todos já entenderam que a chave de tudo é o conteúdo. Não volume e sim foco e qualidade, diferenciais em um ambiente de múltiplas opções para o consumidor final.
Apenas a Netflix anuncia para 2021 um orçamento de US$ 15 bilhões para a produção de séries e conteúdos exclusivos, só para seus cerca de 200 milhões de assinantes, mais de 15 milhões no Brasil. Mantidas as tendências, muito em breve teremos mais assinantes brasileiros da Netflix do que da TV a cabo. Enquanto isso, potências como o Facebook fazem experiências transmitindo até jogos de futebol.
O que se extrai desse cenário é um conjunto de riscos e oportunidades para jornalistas e produtores de conteúdo para abastecer o que, por enquanto, ainda chamamos de televisão. Teremos os grandes produtores e distribuidores de conteúdos ‘macro’, nacionais e globais, e teremos uma infinidade de alternativas segmentadas e ultrasegmentadas. Elas se tornam possíveis porque a nova realidade será cada vez mais anabolizada pela inteligência artificial e principalmente pelo ‘big data’, os bancos de dados inteligentes que permitem aos anunciantes utilizar esse imenso caleidoscópio de conteúdos para atingir consumidores com precisão de raio laser.
Aí está a grande oportunidade, que tantos já identificaram, mas que ainda está só engatinhando. É um caminho que exige uma postura ao mesmo tempo criativa e empreendedora, que significa dedicar mais tempo a projetos próprios do que a procurar emprego. Já é possível concluir que se uma emissora ou plataforma não tem interesse na sua ideia, ela pode ser executada como projeto seu, individual. Com todos os riscos e oportunidades que isso traz.
Com a chegada do 5G, em breve esse universo digital vai passar por novas revoluções e revelar possibilidades ainda desconhecidas. Antes de mais esse salto, o caminho já está suficientemente identificado e confirma que a frase cunhada por Bill Gates em 1996 ainda tem muita vida pela frente: “Content is king”, ou, é o conteúdo que manda.
*Adhemar Altieri, diretor executivo da MediaLink Comunicação Corporativa, foi editor-chefe de telejornais da rede pública canadense CBC e editor de internacional da CTV, principal rede privada do país. No Brasil, foi repórter da Rede Globo, diretor de telejornais regionais do SBT e diretor de jornalismo da Rádio Eldorado, do Grupo Estado.
Artigo publicado originalmente na seção 'Pensata' da edição de setembro de 2020 da Revista Imprensa, dedicada aos 70 anos da televisão no Brasil:
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